O cachorro, o jacaré, o congresso nacional, o STF e os ovos de codorna

Por Sebastião Nunes, GGN -

Praticando caminhada nas margens de bucólica lagoa, certo cachorro distraído viu, repentinamente, tufos de capim se abrirem e deles brotarem, como uma flor nariguda, a cabeçorra de um jacaré graúdo. Vendo o que viu, parou e, como cachorro educado, farejou. Não era dos piores o cheiro. Seria, mal comparando, uma mistura de ovo podre com carcaça de defunto largado cinco dias em beira de estrada. Subtraiu da mistura o cheiro do defunto, dando o devido desconto às suas habilidades olfativas, do que resultou apenas pestilento cheiro de ovo podre, acessível a qualquer vivente. Acontece que, ao faro apurado, somava aguçada inteligência, que lhe permitiu deduzir que o cheiro vinha do jacaré narigudo que pontificava entre os tufos de capim.

A SABEDORIA DOS SÁBIOS

            Cordial, sempre disposto a travar conhecimentos e angariar amigos, aproximou-se o cachorro do cheiro, digo, da lagoa, quero dizer, do jacaré.

Chegou-se, sorriu com quantos dentes possuía, e discursou educadamente:

            – Bom dia, senhor jacaré! Noto que aprecias espairecer à beira da lagoa, decerto contemplando a subida do sol rumo ao centro da abóbada celeste. Eu também, conforme aqui me vês, sempre percorro trajetos diversos em busca da beleza do dia e do perfume das flores.

            Bem satisfeito ficou o jacaré com o cumprimento do cachorro. Apertando os olhos, espremeu duas lágrimas de crocodilo, uma de cada lado, e respondeu assim à saudação:

            – Estimado e valoroso exemplar da raça canina. De fato, é com prazer que aqui pairo, de bruços à beira d’água, gastando um pouco do tempo que me sobeja. Tivesse eu um corpo menos volumoso, também me seria prazeroso palmilhar essas estradas que percorres com tanto prazer. Infelizmente, dotou-me a natureza de pernas curtas e rabo comprido, além de barriga e boca grandes, de modo que me é difícil, para não dizer impossível, dar-me ao luxo de caminhadas ao léu.

            Contente com a amável resposta, voltou a taramelar o cachorro:

            – Nobre amigo! Como sabes, disponho de faro apurado, que nos foi propiciado, a nós, cães e canídeos diversos, pela sábia mãe natureza. A ti, se deu ela corpo tão volumoso e patas curtas, também propiciou lagos, lagoas, pântanos, brejos e igarapés, para que neles tu e teus parentes se deliciassem ao longo dos calorosos dias e das noites estivais.

A DIALÉTICA DOS FEDORES

            Dito isto, passou o cachorro ao tema que nos envolve como o útero materno ao feto que carinhosamente abriga:

            – Permita-me perguntar-te, se não sou inconveniente ou indelicado, mas por acaso és tu que tanto fedes? Espero que notes não haver, em minha inquirição, qualquer sugestão de escárnio ou maldizer, sendo apenas elementar curiosidade que me leva a tal questionamento.

            Novamente tomado de vivíssima emoção, espremeu o jacaré os olhos, deles brotando quatro compridas lágrimas de crocodilo, duas em cada olho, por questões de simetria e também de estética. Com voz estremecida, retornou:
            – Comove-me tua delicadeza, ó nobre quadrúpede de rabo curvo. Fosse um indivíduo da espécie humana, diria: “Sente só como fede o sacana!” Mas tu, não. Indagas-me com tanta cerimônia que cuido estar diante de sentimento absolutamente puro. Devo, no entanto, responder que não, não é de mim que parte o fedor que referes. Quem sabe não será de ti mesmo, que andas por tantos caminhos que nem sei quais?

            Pasmou-se o cachorro. Arregalou os olhos e ponderou, silencioso como um Buda, se não seria ele, de fato, o portador do inusitado bodum. Assim, cheirou-se da cabeça ao rabo, sem esquecer as partes pudendas. Mas, não, o cheiro não era seu. E se não era dele, nem do distinto jacaré ali presente, a quem pertenceria? A algum nobre senador da república? A excelentíssimo deputado federal? Quem sabe a sapientíssimo membro do STF? Acham-se de tal forma mergulhados em sujeira os excelentíssimos que não seria demasiado pensar na horrível fedentina como originando-se neles.

OS OVOS ÀS MARGENS PLÁCIDAS

            Considerada e bem considerada a hipótese, já se preparava a propô-la ao amigo jacaré quando, sem mais nem menos, ouviram uma vozinha delicada, que dizia:

            – Ah, ah, ah! Meus estimados e ingênuos amigos! Quanta lerdeza se esconde em vosso palavreado oco! Sou eu e minha prole que fedemos. Acontece que botei, há dias, uma dúzia de belos e sadios ovos, que me dediquei a chocar desde então. E eis que hoje, exatamente hoje, estão a eclodir (como diria um português de Coimbra), botando-me no mundo doze lindos rebentos, os mais belos de toda a natureza! Não é magnífico?

            Abestalharam-se o jacaré e o cachorro. De quem seria a voz? Nisso ouviram um ruge-ruge e eis que surge, dos tufos de capim, uma codorna das mais catitas, rebolando as ancas e rindo-se às gargalhadas.

            – Com que então, meus amigos, fiz-vos de parvos, hein? Estais por aí a discutir fedores quando se trata de odores... Não, não cederei à tentação do trocadilho com “as dores do parto”. Sou por demais inteligente para tanto. Mas trata-se, de fato, de um momento glorioso de minha jovem existência de bípede emplumado. Dei à luz, e aqui vos trago meus rebentos, a quem vos suplico aceitem como afilhados.

MORAL DA HISTÓRIA

            Feder, todos nós fedemos. Mas a câmara dos deputados, o senado e o STF fedem muito mais do que nós.
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