Criada recentemente no Facebook, a página Últimas Palavras de Jovens Negros imortaliza
a voz de jovens inocentes mortos pela Polícia Militar. As frases, como
"Quero a minha mãe" e "Por que o senhor atirou em mim?", são
acompanhadas pelo nome da vítima e uma descrição de cada caso.
Luzia Souza, professora de História que
cuida da página, crê que a sociedade não percebe que há um recorte
racial nesses casos de violência. "Parece que a bala da polícia tem um
sensor na ponta que só encontra jovem negro", afirma. A professora, que
perdeu um irmão e um primo para a violência, aponta o papel da mídia na
“naturalização” da violência policial contra jovens negros.
Do El País
As últimas palavras de jovens negros mortos pela Polícia Militar são imortalizadas em página do Facebook
“Quero a minha mãe”, disse Herinaldo
Vinicius de Santana, de 11 anos. Provavelmente não foi a primeira vez
que o jovem falou essas palavras. Mas foi a última. Em 23 de setembro de
2015 ele foi baleado e morto por policiais militares na comunidade
Parque Alegria, no complexo do Cajú, no Rio de Janeiro.
Testemunhas disseram que um grupo de PMs patrulhava o local, que conta
com uma Unidade Policial Pacificadora, e se assustou quando a criança
desceu correndo uma escadaria do bairro. Em seu bolso, 80 centavos para
comprar uma bolinha de pingue-pongue. Após receber os disparos, Santana
caiu e, segundo testemunhas disse suas últimas palavras: “Quero minha
mãe”. Não deu tempo. Quando ela chegou, ele já estava morto. A frase, no
entanto, foi imortalizada na página Últimas Palavras de Jovens Negros, criada recentemente no Facebook. O caso de Santana ainda está sob investigação.
“Nossa página tem por objetivo mostrar
que esses jovens não eram, e nunca foram enquanto viveram, coisa sem
valor”, diz um dos posts, que traça ainda um paralelo entre os métodos violentos da PM de
hoje com o dos feitores e capitães-do-mato dos tempos da escravidão no
Brasil colônia: “só trocaram o açoites por armas de fogo”. A iniciativa
toca em uma antiga ferida do país que ainda está longe de cicatrizar: a
maneira como a polícia por vezes age de forma arbitrária e ilegal nos
bairros mais pobres. Nas periferias, onde não é necessário ter um
mandado de busca e apreensão para entrar na casa de alguém, as balas não
são de borracha e muitas vezes levarapenas um tapa na cara é o melhor desfecho para umenquadro.
As frases são acompanhadas pelo nome da vítima, uma breve descrição dos fatos e ahashtag #últimaspalavras.
Algumas delas são simples, apenas gemidos ou gritos de dor, o último
registro vocal de alguém prestes a morrer. “Mmmm....”, teria dito André
Luís Parruda Goulart Siqueira Junior, 17, ao levar um mata-leão de um
policial militar no dia 19 de março deste ano. Ele não resistiu e morreu
sufocado. A versão oficial é que ele fugiu de uma abordagem da tropa, e
precisou ser imobilizado.
“Parece que a sociedade não se toca que existe um recorte racial bem grande nisso,
parece que a bala da polícia tem um sensor na ponta que só encontra
jovem negro”, afirma Luzia Souza, a professora de História por trás da
página. Moradora da periferia da zona leste, ela perdeu um irmão e um
primo para a violência. A inspiração para a iniciativa veio de uma série
de montagens semelhantes feitas tendo como base asmortes de jovens negros nos Estados Unidos em 2014 e 2015, que deu origem ao movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam).
A professora aponta ainda o papel da
mídia na “naturalização” da violência policial contra jovens negros.
“Você percebe isso nas manchetes. Se é um jovem branco preso com droga, é
‘Estudante preso com droga’. Se é um negro, é ‘Traficante preso com
droga”. Segundo Luzia, isso colabora para tornar as mortes de jovens
negros “normais”. “É como se eles não tivessem humanidade, profissão,
família, futuro...”, explica.
Outras frases da página refletem o
espanto de quem foi baleado sem motivo algum por quem deveria ser
responsável por sua proteção. “Por que o senhor atirou em mim?”, indagou
Douglas Rodrigues, 17, após ser alvejado por um PM em 28 de novembro de
2013, na Vila Medeiros, zona norte de São Paulo. Os policiais foram ao
local para atender uma denúncia de “distúrbio da paz”.
Quando o soldado
Luciano Pinheiro Bispo foi sair da viatura para realizar a abordagem,
sua arma disparou. Em nota, a corporação afirmou que “por motivo a
esclarecer, houve disparo acidental, que atingiu um adolescente, de 17
anos, no tórax”. A morte de Rodrigues provocou uma série de protestos na
região norte da capital, que culminaram com a interdição da rodovia
Fernão Dias, três caminhões e seis ônibus queimado.
A morte de Douglas - e suas últimas palavras - deram origem a uma campanha contra a violência policial que se espalhou pelas redes sociais. À época, um grupo de artistas, entre eles o rapper Emicida, o cantor de funk MC Guimé e o dj Kl Jay, dos Racionais MC's, gravou um vídeo para dar visibilidade ao caso. "Não precisa me matar, senhor...", teria dito Lucas Custódio, 16. Em 29 de maio de 2015 o jovem jogava bola com amigos quando foi abordado por policiais.
Algemado, foi levado para um matagal na favela Sucupira, no Grajaú, zona sul de São Paulo, onde foi morto. Em um dos posts, os administradores da página dizem que querem “ecoar as vozes dos mortos para que cheguem a todos que não puderam ouvir naquele momento”. E elas chegam. Como um chute no estômago.
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