Como impressiona o sumiço das multidões que, há
apenas alguns meses, saíam às ruas com a camisa amarela exigindo mais
saúde e educação. Como impressiona o silêncio dos vizinhos que, há
apenas alguns meses, iam às janelas bater panelas exigindo o fim da
corrupção
Por Fábio Flora, Pasmatório -
Quem conta a história é o professor Clóvis de Barros Filho.
Tinha levado a família inteira para almoçar fora. Comemorava a
aprovação num concurso. Terminada a refeição, ele comentou com o garçom
que achara a conta alta. Ouviu em troca: é mais do que eu tiro no mês.
Provocado pela revelação, lançou então uma pergunta ao jovem: te parece
justo que alguém gaste no almoço mais do que você tira no mês?
O funcionário respondeu que sim. Afinal, quem tinha
estudado muito e se preparado tanto merecia ganhar mais do que alguém
como ele, que não tinha podido frequentar uma escola. Clóvis não se
satisfez: e te parece justo que uns possam frequentar uma escola e
outros não? O rapaz devolveu: sim, eu vim do Nordeste
para trabalhar, tinha que ajudar meus pais. O mestre insistiu: e te
parece justo que alguns tenham que se deslocar de onde nasceram para
conseguir trabalho?
Sim. E sim. E mais um sim. E assim foram trezentos
te-parece-justos e trezentos sins. Até o sujeito levantar as mãos para o
céu e agradecer a Deus o fato de o patrão dividir com ele e os outros
empregados a carne que sobrava (quando sobrava) para que pudessem fazer
um churrasquinho ao final do expediente.
Impressiona a resignação.
Como impressiona o sumiço das multidões que, há
apenas alguns meses, saíam às ruas com a camisa amarela exigindo mais
saúde e educação. Como impressiona o silêncio dos vizinhos que, há apenas alguns meses, iam às janelas bater panelas exigindo o fim da corrupção.
Como impressiona – talvez o que mais impressiona – a aparente
indiferença (aprovação?) das pessoas em relação ao presente e ao futuro
do país.
A aparente cadeia de sins em que a maioria se acorrenta – como aquele garçom – sem oferecer resistência.
Há quem diga que eu ando pessimista demais. Que o momento é de esperança, já que a sociedade, ao afastar “aquele partido” de centenas de prefeituras e não reeleger vereador o filho do “comandante máximo da organização criminosa”, deu mostras de que não tolera mais corrupção e mau uso do dinheiro público.
Será? Não vejo essa intolerância toda (nem consigo ser otimista) quando constato que os dois partidos recordistas de barrados pela Lei da Ficha Limpa saíram ainda mais fortes das urnas. O PMDB
– sócio com cadeira cativa na roubalheira nacional desde que meu
tataravô batia ponto na porta da Colombo – continua a ser a legenda com
mais prefeitos; já o PSDB – que pretende revolucionar a educação brasileira fechando escolas e superfaturando merenda – foi a que mais cresceu.
Há quem diga também que, agora que o impeachment passou e o período eleitoral está terminando, o presidente temerário poderá fazer as reformas de que o país tanto precisa, a começar pela lei que fixa um teto para os gastos públicos. Pasmem: tem gente toda alegrinha porque testemunhou deputados trabalhando em plena segunda-feira, até altas horas, a fim de aprovar a tal PEC 241. Estaria aí a prova de que, pelo bem do Brasil, Congresso e Planalto voltaram a se entender.
Posso lhes contar uma coisa, fofildos? Voltaram a
se entender (leia-se: negociar cargos e vantagens) para congelar
investimentos em saúde e educação
por vinte anos, causando um baita prejuízo aos que mais carecem dos
serviços públicos. Querem repassar a conta da crise apenas para a
parcela mais vulnerável da população. Enquanto isso, nossos trumps e
suas megafortunas – que proporcionalmente sempre foram menos taxados por
estas bandas – se safam mais uma vez, protegidos pelos legisladores que
eles mesmos ajudaram a eleger com suas doações de campanha.
Como nada é tão ruim que não possa piorar,
amiguitos chegam a corroborar o neopentecostalismo de coalização que
paira sobre nossa titubeante democracia ao rogarem a Deus que o pai do Michelzinho conclua, até o fim de seu mandato, a reforma da Previdência e a trabalhista. Dizem que só com a modernização de nossas leis – antigas e tão fascistas quanto um Mussolini, segundo eles – os empresários retomarão a confiança, a economia voltará a crescer e os pais de família recuperarão seus empregos.
Cá entre nós, estou tentando entender não só de onde vem tanta compaixão pelos senhores de engenho, essas vítimas da ditadura do proletariado, como também de que maneira cortar direitos – no lugar de investir em infraestrutura, qualificar a mão de obra e estimular o consumo – vai transformar recessão em retomada.
No caso das reformas, de novo são os mais pobres e a classe média
– só eles, amores – os escolhidos para o abate. O que se planeja é um
cenário que rivaliza com a mais cruel distopia: homens e mulheres
trabalhando até a última idade, CLT “flexibilizada” (com a terceirização das atividades-fim e a prevalência do negociado sobre o legislado) e saúde
ainda mais deficiente. Tudo isso justamente quando os estudos
demográficos apontam para o envelhecimento dos brasileiros, contexto em
que a demanda por médicos, remédios e hospitais só tende a aumentar. É a
antecipação do Apocalipse (para usar um termo bíblico, tão caro a uma
parcela cada vez maior do eleitorado).
Sério: o olhar encantado diante do engajamento
decorativo da primeira-dama ou a expressão apática frente aos jornais
pendurados nas bancas alimenta minhas melhores teorias da conspiração;
entre elas, a de que uma novela das seis cujo protagonista (Candinho)
tinha como lema “Tudo que acontece de ruim na vida da gente é pra meiorá”
– e cuja exibição se deu nos meses imediatamente anteriores a essas
PECs e picas no povo – não pode ter sido mera coincidência.
É nessas horas que me lembro do romance A casa das sete torres, de Nathaniel Hawthorne. Lá pelas tantas, um personagem afirma que “o mundo deve todo o seu progresso a homens infelizes, enquanto os felizes se confinam em moldes antigos”. A frase completa à perfeição o sentido de um meme que tem circulado nas redes sociais, segundo o qual PEC é a sigla para “Pobres, Enganados e Contentes”.
Não é difícil fazer o link entre esses textos e o
conformismo daquele garçom – convencido de que só ele é responsável pela
própria condição e de que o perfume da carne assando é sinal de que
tudo cheira bem ao seu redor.
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