‘O amor é sexualmente transmissível’


Karen Curi, Revista Bula -

Parece que o mundo vai acabar. Eu te consumo, te quero com urgência. Tenho pressa em me satisfazer, prontidão em saciar a fome de um tipo veloz de amor, de sexo, de companhia. Eu te uso e você me usa pelos mesmos motivos. Precisamos um do outro para que nos fartemos desse algo possante e magnético que somos nós dois juntos. Tragamos o cigarro da nossa relação acessível, disponível, lasciva e despretensiosa. Nos servimos sem o menor pudor e o mínimo sinal de constrangimento. A premência de viver até a última gota estimula o tesão pela vida em si e pela fugacidade do prazer do instante.

No duro, nós sabemos por que nos consumimos e nos descartamos todos os dias. E por qual razão nos enganamos e fingimos que somos felizes nos alimentando e sendo alimentados simultaneamente. É que somos carentes de um sentimento e, não obstante, como se isso fosse coisa à toa, desejamos, ainda por cima, que ele seja recíproco. Não basta ter sensações, gozo, euforia momentânea. Nada disso preenche o buraco fundo da necessidade de amar alguém e a si mesmo.

Eu te uso e você me usa com consentimento mútuo. Nos prometemos uma felicidade expressa, um amor de fast-food, um amanhã sem porquês. Estava tudo correndo às mil maravilhas, até que um dos carros perdeu o freio e saiu desgovernado pela estrada afora, rodopiando, cantando pneus. Num piscar de olhos alguém se apaixonou. Mas como foi possível? Não era esperado. Fim da linha para o coração desorientado.

A verdade é que não temos controle de nada nessa vida. É uma ilusão egocêntrica achar que é possível monitorar relações, fiscalizar sentimentos, vistoriar-se por dentro. Tudo mentira. Quando nos apaixonamos nos damos conta do quanto somos frágeis, dependentes de toda e qualquer ação que venha do outro. No instante em que nos tornamos vulneráveis diante do amado, o menor desnível de reciprocidade começa a incomodar. E muito.

É… A crise também chega às relações que mal começaram. Principalmente quando uma pessoa está na relação e a outra não. Qualquer desatenção, falta de tempo, de assunto, é capaz de magoar o coração cobrador de afeto. Porque se acha no direito de cambiar o trato de uma hora para a outra. Reclama porque se sente usado, sem avaliar que antes, ser usado bastava. Mais que isso: satisfazia. Agora, saber-se usado é sentir-se ordinário. E não tem coisa pior no mundo que se sentir assim, à mercê da vontade do outro.

O apaixonado, insatisfeito, pequeno diante do seu amor, já não se contenta com explosivos e esporádicos encontros relâmpagos. Ele quer mais, ele faz planos. Quer dormir de conchinha, andar de mãos dadas pela rua e assistir comédia romântica no cinema. Quer cozinhar junto, levar ao almoço de domingo e apresentar toda a família. Sonha com uma viagem romântica a Paris.

Só que a vida não é do jeito que a gente quer. Há um extenso leque de possibilidades, mas uma estreita chance de que duas peças se encaixem. Não foi dessa vez. Voltamos à estaca zero, ao canibalismo sentimental, que pelo menos alimenta o ego e satisfaz ao instinto. Usados, pois, mas com um lapso de precaução, dizendo fugir do amor e, ao mesmo tempo, à sua espreita na esquina da vida.

Se o amor é mesmo sexualmente transmissível, melhor que nos usemos, mas com moderação.

*Título tomado de empréstimo de Marçal Aquino.
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