Por Eberth Vêncio, Revista Bula -
Quando eu crescer, não quero ser igual a você. Fazer fortuna. Aplicar
na bolsa. Comprar um carro asiático. Multiplicar o patrimônio da
família. Criar estratégias contábeis para pagar menos impostos ao
Governo. Esse mundo simplesmente não me interessa. Quando eu crescer,
penso em me manter desgovernado o bastante para seguir o meu caminho. A
minha declaração de imposto de renda, coitada, de tão pífia, vai caber
num papel de balinha, rimada em versos adocicados ao som dos pífaros,
provavelmente, um haicai. Quando eu crescer, não quero ser igual a você.
Estudar em demasia até ficar burro. Tornar-me especialista em
mundo-cão. Sonhar com metas, mercado e promoção. Achar poesia coisa de
veado. Preencher planilhas Excel. Olhar para o chão, ao invés do céu,
sempre que sair de casa pela manhã. Hei de tropeçar nas estrelas, ao
raiar dos dias. Aliás, em tempo: quando eu crescer, não usarei
despertadores, mas, que vai ter muito passarinho cantando na janela, ah,
isso vai. Não me leve a mal, mas, quando o amor crescer em mim, eu vou
voar. Isso não é devaneio. É promessa. Anote aí no seu diário de
ocorrências estranhas. Quando eu crescer, nem de perto eu quero ser
igual a você. Enxotar velho. Foder criança. Socar mulher. Torturar outro
homem com a ajuda dos amigos. Tocar a música alto para abafar os
gritos. Escute só: quando eu crescer, você já terá morrido, devidamente
esquecido como toda e qualquer parcela insignificante da humanidade
criada por Deus só para encher linguiça. Não posso aceitar que ele se
ocupe com tamanha irrelevância, a ponto de conceder perdão e guarida aos
canalhas. Quando eu crescer, não quero ser Deus, mas também não quero
ser igual a você. Fundar uma igreja. Liderar homens fracos. Alimentar os
cães raivosos que vigiam as fronteiras. Sobrevoar mantas de refugiados
com um helicóptero da Cruz Vermelha. Atirar rango pela janela, num
repetitivo gesto humanitário para se sentir menos pedra. Quando eu
crescer, vou atravancar o seu caminho com as palavras mais macias que eu
puder colher das lavouras poéticas de Manoel de Barros e Mario
Quintana. Quando eu crescer, não quero ser igual a você, um sacana.
Aplicar golpe. Tomar poder. Adestrar mísseis. Gozar planos de ocupação.
Enxertar ogivas. Dizimar aldeias com um gás sufocante. Só mais um
instante: quando eu crescer, você vai se perguntar, atônito, por que
razão não se parece mais comigo. Daí será tarde demais. O amor que um
dia eu senti por você já terá morrido. Criança diz cada coisa.
Ilustração: Zinaida Serebriakova
About Unknown

0 comentários:
Postar um comentário