Livros
didáticos franceses reforçam as fronteiras simbólicas que demarcam o
mundo entre riqueza e pobreza, modernidade e atraso tecnológico, luxo e
miséria
Por Leonardo Moreira Ulhôa*, Carta Maior -
É inegável que uma das representações que
abrem caminhos para a visibilidade do Rio de Janeiro no cenário mundial
está associada ao inusitado imaginário do samba e do carnaval. Aliás,
sob a égide do olhar estrangeiro reina a crença generalizada de uma
cidade desprovida de preconceitos e, por amálgama, cercada de
glamourosas paisagens naturais. Trata-se, em termos simples, de um lugar
quase impossível de não se amar.
No plano das contra-representações, os livros didáticos franceses descortinam outros olhares sobre as formas de ver e perceber o Rio de Janeiro, comumente baseada em um rol de imagens que estilhaçam as mazelas de seu cotidiano.
A cidade, outrora “maravilhosa”, recebe os holofotes face ao frenesi da vida urbana: bolsões de miséria, guerra entre traficantes, narcotráfico, assaltos, violência generalizada, ocupações irregulares e uma infinidade de adjetivações que expõem as suas fissuras sociais.
No plano das contra-representações, os livros didáticos franceses descortinam outros olhares sobre as formas de ver e perceber o Rio de Janeiro, comumente baseada em um rol de imagens que estilhaçam as mazelas de seu cotidiano.
A cidade, outrora “maravilhosa”, recebe os holofotes face ao frenesi da vida urbana: bolsões de miséria, guerra entre traficantes, narcotráfico, assaltos, violência generalizada, ocupações irregulares e uma infinidade de adjetivações que expõem as suas fissuras sociais.
Sob esse prisma, o Rio de Janeiro ocupa um
lugar distintivo – para não dizer depreciativo ou nocivo – no tocante à
iconografia das obras didáticas francesas.
O que nos salta aos olhos em tais representações é que elas trazem, no seu âmago, o resíduo e a sombra de visões historicamente construídas e que, sem dúvida, continuam a se perpetuar ao longo de várias décadas. Refiro-me, especificamente, às heranças negativas do imaginário europeu que ainda atribuem às cidades brasileiras, como é o caso do Rio de Janeiro, o status identitário de uma sociedade “primitiva” e “não civilizada”; por isso, predominantemente marcada pela balbúrdia urbana.
Na estrutura narrativa dos livros didáticos franceses, as favelas cariocas tornaram-se uma espécie de marco da criminalidade, da sujeira e explosão das tensões sociais. De modo generalizante, descrevem-na como locais pestilentos e propícios para propagação de epidemias, constituindo-se na principal metáfora da náusea provocada pelo lixo que se encontra em todos os lugares e pelos odores que dela emanam.
Somam-se a esses acutilantes olhares, as inúmeras descrições apocalípticas que, entrelaçadas aos retratos da miséria, contribuem ainda mais para engessar a imagem diabolizadora do Rio de Janeiro como um território dominado pelo tráfico e pela bandidagem.
É possível enumerar, aleatoriamente, algumas impactantes narrativas que não deixam dúvidas quanto à atmosfera de pânico criada sobre o Rio de Janeiro, as quais inspiram um constante clima de guerra instalado na cidade:
“[...] Os assaltos se multiplicam no Rio de Janeiro, principal destino turístico do Brasil. Sábado, um espanhol foi morto depois de ser baleado na nuca. Ele tentava impedir o roubo de sua máquina fotográfica por um grupo de menores. No fim de semana anterior, 24 turistas foram roubados e uma japonesa de 61 anos foi esfaqueada em Copacabana. O sentimento de insegurança é ainda mais forte que a guerra entre os grupos rivais, traficantes de droga [...]” (AZZOUZ, 2005, p. 349).
“[...] Sobre a laje das casas, bem no alto, as crianças brincam... O ritual é conhecido de todos: a pipa vermelha voando ao vento significa perigo; a pipa verde indica que tudo está bem, pode-se vender a droga... Mas, é difícil conhecer a quantidade de drogas que passa de mão em mão, como também o número de cadáveres recolhidos pela polícia” (IVERNEL, 2001, p. 23).
“[...] Os grupos que traficam a droga em algumas favelas são comumente chamados de ‘O poder paralelo’ – são as forças da sombra que desafiam o Estado. Os responsáveis pela cidade sabem que há muito tempo a delinquência é grande, onde o poder público não está presente (COTE; DUNLOP, 2005, p. 316.).
“[...] Com 250 mortos por mês, a violência no Rio de Janeiro atinge proporções dramáticas... Não sem razão, a sua polícia é uma das mais violentas do mundo... Aos olhos da maior parte dos 38.000 homens que formam a polícia do Estado do Rio, os direitos humanos servem para proteger os infratores. É difícil mudar de opinião porque a cada semana, em média, dois policias são mortos pelos bandidos (KNAFOU, 2010, p. 148).
O que nos salta aos olhos em tais representações é que elas trazem, no seu âmago, o resíduo e a sombra de visões historicamente construídas e que, sem dúvida, continuam a se perpetuar ao longo de várias décadas. Refiro-me, especificamente, às heranças negativas do imaginário europeu que ainda atribuem às cidades brasileiras, como é o caso do Rio de Janeiro, o status identitário de uma sociedade “primitiva” e “não civilizada”; por isso, predominantemente marcada pela balbúrdia urbana.
Na estrutura narrativa dos livros didáticos franceses, as favelas cariocas tornaram-se uma espécie de marco da criminalidade, da sujeira e explosão das tensões sociais. De modo generalizante, descrevem-na como locais pestilentos e propícios para propagação de epidemias, constituindo-se na principal metáfora da náusea provocada pelo lixo que se encontra em todos os lugares e pelos odores que dela emanam.
Somam-se a esses acutilantes olhares, as inúmeras descrições apocalípticas que, entrelaçadas aos retratos da miséria, contribuem ainda mais para engessar a imagem diabolizadora do Rio de Janeiro como um território dominado pelo tráfico e pela bandidagem.
É possível enumerar, aleatoriamente, algumas impactantes narrativas que não deixam dúvidas quanto à atmosfera de pânico criada sobre o Rio de Janeiro, as quais inspiram um constante clima de guerra instalado na cidade:
“[...] Os assaltos se multiplicam no Rio de Janeiro, principal destino turístico do Brasil. Sábado, um espanhol foi morto depois de ser baleado na nuca. Ele tentava impedir o roubo de sua máquina fotográfica por um grupo de menores. No fim de semana anterior, 24 turistas foram roubados e uma japonesa de 61 anos foi esfaqueada em Copacabana. O sentimento de insegurança é ainda mais forte que a guerra entre os grupos rivais, traficantes de droga [...]” (AZZOUZ, 2005, p. 349).
“[...] Sobre a laje das casas, bem no alto, as crianças brincam... O ritual é conhecido de todos: a pipa vermelha voando ao vento significa perigo; a pipa verde indica que tudo está bem, pode-se vender a droga... Mas, é difícil conhecer a quantidade de drogas que passa de mão em mão, como também o número de cadáveres recolhidos pela polícia” (IVERNEL, 2001, p. 23).
“[...] Os grupos que traficam a droga em algumas favelas são comumente chamados de ‘O poder paralelo’ – são as forças da sombra que desafiam o Estado. Os responsáveis pela cidade sabem que há muito tempo a delinquência é grande, onde o poder público não está presente (COTE; DUNLOP, 2005, p. 316.).
“[...] Com 250 mortos por mês, a violência no Rio de Janeiro atinge proporções dramáticas... Não sem razão, a sua polícia é uma das mais violentas do mundo... Aos olhos da maior parte dos 38.000 homens que formam a polícia do Estado do Rio, os direitos humanos servem para proteger os infratores. É difícil mudar de opinião porque a cada semana, em média, dois policias são mortos pelos bandidos (KNAFOU, 2010, p. 148).
Mas não é apenas isso.
A persistência de ver o Rio de Janeiro como uma cidade inóspita e repulsiva não se esgota com as narrativas mencionadas anteriormente. Sob outros olhares, as imagens da insegurança e das crianças esfaimadas que vasculham refugos de toda espécie à procura de algum alimento, ajudam a definir o imaginário social de uma sociedade à beira das beiras, como retratado nas Figuras 1, 2 e 3.
A persistência de ver o Rio de Janeiro como uma cidade inóspita e repulsiva não se esgota com as narrativas mencionadas anteriormente. Sob outros olhares, as imagens da insegurança e das crianças esfaimadas que vasculham refugos de toda espécie à procura de algum alimento, ajudam a definir o imaginário social de uma sociedade à beira das beiras, como retratado nas Figuras 1, 2 e 3.
Nesse caldo imagético, se assim podemos dizer, o Rio de Janeiro é uma
das vitrines da exclusão socioeconômica do mundo, acomodada sob a lógica
de uma visão verticalizada que reproduz as múltiplas facetas da
desordem, do desprezível, do sujo e, ao mesmo tempo, de uma “cidade
selvagem”. Subentende-se, então, que permanece à sombra de uma barbárie.
Na verdade, o fato que chama sempre a atenção é o caráter fatalista a que estão submetidos o rosário de lugares mostrados do Rio de Janeiro, sugerindo uma aparente “naturalização” das batalhas urbanas que assolam diversos espaços da cidade. Esta tentativa de canonização da criminalidade e da delinquência, sem qualquer esforço de interpretação da realidade, projetam visões estereotipadas que vêem, na singularidade, os insignes traços que generalizam as suas características.
Pois bem, a força de tais imagens está em não conseguir se destituir do ranço que lhes foram atribuídas.
Alimentadas, então, pelos aspectos excludentes e pejorativos, as imagens do Rio de Janeiro cada vez mais parecem confirmar a sistematização de um pensamento eurocêntrico, uma vez que, constituídas pelas insuficiências das formas de vida, tratam-na como uma sociedade atrasada ou periférica.
A rigor, as pleonásticas imagens que refletem o Rio de Janeiro nos manuais escolares da França nos colocam, minimamente, uma interrogação: o que se encontra nas entrelinhas, no sentido implícito de tais imagens e no “não-dito” dos discursos que as acompanham?
Olhos que enxergam para além do óbvio sabem que elas – as imagens – não são um reflexo fiel da realidade. É urgente entender que a matriz de tais representações, carregada de negatividade e ideias preconcebidas reverberam, pois, o espectro ideológico da sociedade que as produzem. Explico: as imagens do Rio de Janeiro nas obras didáticas francesas presumem a dualidade entre dois mundos, ancorada no sublime modelo de representação das sociedades desenvolvidas em oposição àquelas “não-civilizadas”.
Ou, melhor dizendo: o que vemos na iconografia dos livros didáticos franceses, seja nas fotografias, seja nas teias que amarram as suas narrativas, não é o mundo, mas determinadas ideias ou concepções relativas ao mundo. Se pudesse resumir numa palavra, diria que o modelo civilizador europeu rasgou o globo terrestre em duas partes, conferindo valores distintos para o Norte e para o Sul. Por conseguinte, estabeleceram as fronteiras simbólicas que demarcam o mundo entre riqueza e pobreza, modernidade e atraso tecnológico, luxo e miséria, desenvolvimento e subdesenvolvimento, barbárie e civilização... Interpretações contrapostas, algumas vezes pavorosas!
Nessa linha divisória, as cidades europeias não têm nada a ver com as arrebatadoras e assombrosas imagens do Rio de Janeiro. É como se elas fornecessem o ideal de sua civilização para as sociedades subjacentes. É como, também, se atuassem na tentativa de impor um modelo de organização espacial para as cidades essencialmente desordenadas e em desequilíbrio. Ou, ainda, como se impusesse ao Rio de Janeiro uma forma quase inescapável de uma sociedade em permanente desespero.
Questões ideológicas à parte, as imagens nuas e cruas do Rio de Janeiro nos livros didáticos franceses soam como escárnio. E, literalmente, elas são para francês ver!
* Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia. Desenvolve pesquisas relacionadas às imagens do Brasil em livros didáticos estrangeiros. Entre 2011 e 2012 realizou estágio de doutoramento no Laboratoire Espaces, Nature et Culture (ENeC) - Université Paris IV (Sorbonne). Em 2013, defendeu a tese de doutorado intitulada “Imagens e estereótipos do Brasil nos livros didáticos franceses”, sendo aprovado com louvor e distinção pela banca avaliadora. É Técnico em Assuntos Educacionais da Universidade Federal de Uberlândia.
Na verdade, o fato que chama sempre a atenção é o caráter fatalista a que estão submetidos o rosário de lugares mostrados do Rio de Janeiro, sugerindo uma aparente “naturalização” das batalhas urbanas que assolam diversos espaços da cidade. Esta tentativa de canonização da criminalidade e da delinquência, sem qualquer esforço de interpretação da realidade, projetam visões estereotipadas que vêem, na singularidade, os insignes traços que generalizam as suas características.
Pois bem, a força de tais imagens está em não conseguir se destituir do ranço que lhes foram atribuídas.
Alimentadas, então, pelos aspectos excludentes e pejorativos, as imagens do Rio de Janeiro cada vez mais parecem confirmar a sistematização de um pensamento eurocêntrico, uma vez que, constituídas pelas insuficiências das formas de vida, tratam-na como uma sociedade atrasada ou periférica.
A rigor, as pleonásticas imagens que refletem o Rio de Janeiro nos manuais escolares da França nos colocam, minimamente, uma interrogação: o que se encontra nas entrelinhas, no sentido implícito de tais imagens e no “não-dito” dos discursos que as acompanham?
Olhos que enxergam para além do óbvio sabem que elas – as imagens – não são um reflexo fiel da realidade. É urgente entender que a matriz de tais representações, carregada de negatividade e ideias preconcebidas reverberam, pois, o espectro ideológico da sociedade que as produzem. Explico: as imagens do Rio de Janeiro nas obras didáticas francesas presumem a dualidade entre dois mundos, ancorada no sublime modelo de representação das sociedades desenvolvidas em oposição àquelas “não-civilizadas”.
Ou, melhor dizendo: o que vemos na iconografia dos livros didáticos franceses, seja nas fotografias, seja nas teias que amarram as suas narrativas, não é o mundo, mas determinadas ideias ou concepções relativas ao mundo. Se pudesse resumir numa palavra, diria que o modelo civilizador europeu rasgou o globo terrestre em duas partes, conferindo valores distintos para o Norte e para o Sul. Por conseguinte, estabeleceram as fronteiras simbólicas que demarcam o mundo entre riqueza e pobreza, modernidade e atraso tecnológico, luxo e miséria, desenvolvimento e subdesenvolvimento, barbárie e civilização... Interpretações contrapostas, algumas vezes pavorosas!
Nessa linha divisória, as cidades europeias não têm nada a ver com as arrebatadoras e assombrosas imagens do Rio de Janeiro. É como se elas fornecessem o ideal de sua civilização para as sociedades subjacentes. É como, também, se atuassem na tentativa de impor um modelo de organização espacial para as cidades essencialmente desordenadas e em desequilíbrio. Ou, ainda, como se impusesse ao Rio de Janeiro uma forma quase inescapável de uma sociedade em permanente desespero.
Questões ideológicas à parte, as imagens nuas e cruas do Rio de Janeiro nos livros didáticos franceses soam como escárnio. E, literalmente, elas são para francês ver!
* Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia. Desenvolve pesquisas relacionadas às imagens do Brasil em livros didáticos estrangeiros. Entre 2011 e 2012 realizou estágio de doutoramento no Laboratoire Espaces, Nature et Culture (ENeC) - Université Paris IV (Sorbonne). Em 2013, defendeu a tese de doutorado intitulada “Imagens e estereótipos do Brasil nos livros didáticos franceses”, sendo aprovado com louvor e distinção pela banca avaliadora. É Técnico em Assuntos Educacionais da Universidade Federal de Uberlândia.
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