Heróis só são heróis em razão do seu povo. Por isso, devem morrer
Por Jari da Rocha, Tijolaço -
Quando o jovem Simon, de 22 anos, do alto da colina do Monte Sacro – uma hora de caminhada da Piazza dei Cinquecento em Roma – prometeu a si mesmo que jamais deixaria de lutar intransigentemente contra a desigualdade, deve ter pensando que o limite dessa luta ultrapassaria a sua própria vida.
Os grilhões da época, agosto de 1805, eram espanhóis.
Sessenta anos depois, José Marti, com dezesseis anos de idade (Ah, esses jovens!) havia publicado “El Diablo Cojuelo” no primeiro e último número de uma revista chamada “La Patria Libre”. Seguindo “o senso de proporção” e o espírito de generosidade harmoniosa de Bolívar, Martí insistiria que “pátria es humanidade”.
Mas foi no mesmo Monte Sacro do juramento de Bolívar, dois mil e poucos anos antes, que os plebeus se reuniram em protesto contra os desmandos dos patrícios sob a liderança de Sicínio, da Antiga Roma.
Os ânimos foram acalmados graças à lábia de um senador, Menênio Agripa, cuja pregação, de que os plebeus deveriam aceitar a ordem natural das coisas, tinha por princípio a resignação e aceitação de que cada um tem o seu lugar definido na sociedade.
Uma espécie de “plebeu bom é plebeu cordato”.
Parece que foi o “The Economist”, em sua prática capacho, o primeiro a acrescentar aspas irônicas ao termo bolivarismo.
A ideia vingou. Milhões de ‘apolíticos’ repetem essa expressão, entre risinhos histéricos e ares de deboche, sem mesmo entender, assim como o “The Economist” seu verdadeiro significado.
O vira-latismo midiático tupiniquim tratou de expandir a ignorância do termo, hoje pronunciado a esmo – pelos cidadãos tementes ao deus capital – em exorcismos públicos para expulsar o comunista do corpo.
Em oposição à derivação bolivarismo, a palavra ‘liberdade’ se tornou imprescindível nos discursos dos mandatários mais conservadores (déspotas) do planeta.
Para Simon Bolívar, igualdade era a “lei das leis” e sem ela, todas as liberdades e todos os direitos morrem na casca. Desta forma, El libertador atribuía ordem à tríade revolucionária francesa.
Antes de liberdade, há de se lutar intransigentemente pela igualdade o que, no fim das contas, será uma questão de fraternidade. Ou, como ainda afirmou Rousseau, “liberdade não pode existir sem igualdade”.
Para não deixar dúvidas sobre seus propósitos, Bolívar tinha libertado todos os escravos de suas propriedades, dando início, assim, a uma base social apta para lutar pela emancipação total do domínio colonial.
Era o começo da tão falada, e até hoje pouco entendida, Revolução Bolivariana.
No Forum Social Mundial de Porto Alegre, em 2005, Hugo Frias Chávez foi a estrela do evento, três dias depois de Lula ter sido vaiado.
As críticas a Lula eram pontuais. Uma delas injusta e o tempo provou isso, a outra profética.
Com três anos de governo, Lula não tinha conseguido mudar o Brasil enquanto o Fome Zero se estruturava e, como se isso não bastasse, ele queria ser uma voz que servisse de ponte (conciliação) entre os dois fóruns: o social em Porto Alegre e o econômico em Davos.
Lula deve ter entendido a razão dessa crítica à conciliação no dia 4 de março, no Aeroporto de Congonhas.
Chávez, por sua vez, já estava há seis anos como governante da Venezuela e havia liderado – a sua maneira e sem arredar pé – uma verdadeira revolução bolivariana no país.
Concorreu contra um sistema partidário corrupto e contra as oligarquias locais fortemente apoiadas pelos EUA. Nomeado, uníssona e escandalosamente, como o ditador, Chávez foi eleito pelo voto popular.
Questionadas pela imprensa conservadora, as eleições foram consideradas irrepreensíveis por vários observadores internacionais, dentre os quais um respeitado ex-presidente norte-americano chamado Jimmy Carter.
A desigualdade histórica gerada por décadas de governos submissos aos grilhões, agora estadunidenses, devia ser combatida. Chávez não cansava de citar El libertador e por isso não vacilava na mesma determinação radical de perseguir a igualdade, mesmo que em circunstâncias adversas.
El comandante nacionalizou o controle sobre os lucros da indústria petrolífera e, com isso, aumentou os investimentos sociais.
Tinha acabado de afrontar os lobos, o que culminou com a tentativa de golpe civil-militar (2002). Mas Chávez era determinado e não dormia de touca: tinha gente fiel ao seu lado.
O bombardeio massivo de ‘informação’, no mundo inteiro, acarretou sérias anomalias na opinião pública. Enquanto muitos ainda acreditavam que bolivarianos comiam criancinhas, Chávez possibilitava que milhares delas fossem à escola pela primeira vez de suas vidas. Rompia, daquele jeitão dele, com décadas de burocracias e de sucessivos ensaios de aniquilamento do povo pobre da Venezuela.
Sobre criancinhas e lobos, aprendeu-se que Chávez cuidava das crianças com um braço e com o outro peleava contra metade do mundo conservador aos gritos, aos empurrões, com olhos nos olhos e dentes afiados.
Hugo Chávez soube tratar criança como criança e lobo como lobo.
Depois do discurso de Dilma no Anhangabaú, neste 1º de maio, olhando para trás a luta histórica dos trabalhadores do mundo e repensando a própria história de lutas dos brasileiros, tem-se a nítida impressão de que o juramento do ignorado Bolívar serve para que se possa entender nossa própria existência.
A presidenta eleita falou, com a franqueza de quem desceu do altar, sobre os riscos iminentes de retrocesso de direitos estruturais na vida do trabalhador. Muitos dos quais, demoraram séculos para serem conquistados.
Diante do mais absurdo, bizarro e surreal golpe institucional que estamos presenciando (passivos?), momento em que todos os sacrifícios, recentes e distantes, se perdem, sem a menor noção de gravidade e de importância, perde-se também, por completo, a dignidade.
A importância deste dia do trabalhador tem relação explícita com os interesses da grande maioria dos brasileiros que, no entanto, (muitos) demonstraram sua indignação contra a obrigação do voto, por meio da abstenção, desdenhando o próprio sistema eleitoral democrático para, depois, colocar a culpa nas estrelas por causa desse congresso de amargar.
Repete-se assim, voluntariamente, a prática de segregação entre patrícios e plebeus. Abstêm-se, por livre escolha, da categoria de cidadão. Os mesmos cooptados pelos discursos simplórios e enganosos se multiplicam com o passar dos séculos, envoltos por um processo de deturpação tendenciosa sem fim.
Da mesma forma o colonizado quando se prostra diante do colonizador ou do empregado, de joelhos diante da elite econômica que lhe propõe, solenemente, ‘confiança e liberdade’, enquanto segura com a mão esquerda um sanduíche e opera a máquina com a direita.
A relevância deste Dia do Trabalho vai além das questões trabalhistas, pois sinaliza a ameaça de retrocesso cultural. Tem relação com as liberdades individuais, uma vez que o cerceamento dos direitos de cada cidadão será ceifado por um conjunto de medidas de causar inveja aos primeiros romanos.
O pacote que se apresenta, envolto em laços que dissimulam normalidade, traz como conteúdo um cabedal de anacronismos humanistas que espraiam a intolerância religiosa, de gênero, de orientação sexual e, por último, a intolerância política.
É como se, num passe de mágica, voltássemos ao Monte Sacro antes de Cristo e, resignados por nossa condição predeterminada na sociedade – como coadjuvantes de maus atores que encenam a tragicômica volta ao passado através de uma ponte para o inferno – aceitássemos, sem resistência, abrir mão dos direitos básicos de cidadão.
Não precisamos, contudo, voltar à Roma Antiga para entender o que são direitos e o que são privilégios nem, tampouco, que não há, por parte do explorador histórico, benevolência.
Chávez, quando ainda dirigente do MBR, já alertava sobre o cinismo da classe política sentada à direita da elite toda poderosa.
“As mentiras políticas alienadoras descreviam a chegada à ‘terra prometida’ através de um mar de rosas… Assim, o ato do voto foi transformado no começo e no fim da democracia”.
No mesmo ano em que Karl Benz e Gottlieb Daimler construíam o primeiro automóvel movido a gasolina, há 130 anos, no outro lado do mundo, trabalhadores se manifestavam nas ruas de Chicago em luta pela redução da jornada de trabalho que chagava a 16 horas diárias.
O confronto, no início de maio de 1886, deixou policiais e manifestantes mortos, alguns presos, outros executados, todos trabalhadores.
A importância do 1º de maio estava definida como processo contínuo, intransigente e sem data para acabar.
Afinal, alguém deve ter escrito por aí que “Todo o poder emana do povo”.
0 comentários:
Postar um comentário