Sebastião Nunes, GGN -
Ivanildes Pereira da Silva mora nos cafundós da
periferia e pula da cama às 5 horas para chegar ao trabalho às 7. Chega,
bota avental, varre o chão da lanchonete, abre as portas e começa a
fritar pastéis, coxinhas e quibes.
Cartazetes anunciam: “6 pastéis por
R$3,00”. “1 refresco e 3 pastéis por R$3,00”. Etc. Até 11 horas, quando
almoça no “a quilo” em frente, fritou mais ou menos 350 pastéis, 280
coxinhas e 120 quibes. Recomeça às 12 e vai até às 16. Como muitos
fregueses almoçam mesmo é salgado com refresco, o movimento aumenta
bastante entre meio-dia e uma da tarde. Quando vai embora, depois de
ceder o lugar a Francisca Oliveira dos Santos, terá fritado uma média de
700 pastéis, 560 coxinhas e 240 quibes. Trabalhando cerca de 26 dias
por mês (folga às quartas-feiras), sua produção mensal de frituras é
aproximadamente a seguinte:
Pastéis: 18.200 unidades
Coxinhas: 14.560 unidades
Quibes: 6.240 unidades
Total: 39.000 frituras/mês
Se não brigar com o patrão, não for suspensa por atraso,
não perder o emprego por doença, terá totalizado depois de um ano a
produção das seguintes frituras:
Pastéis: 218.400 unidades
Coxinhas: 174.720 unidades
Quibes: 74.880 unidades
Total: 468.000 frituras/ano
UMA VIDA DE DEDICAÇÃO
Quase certamente Ivanildes morrerá antes de se
aposentar. Mas vamos supor que, por um desses acasos improváveis,
consiga aguentar os anos de serviço exigidos das mulheres. Pulando de
lanchonete em lanchonete, ganhando sempre o mesmo salário de empregada
sem qualificação, perderá os dentes, a saúde e a beleza – se é que teve
alguma –, mas não perderá o trabalho. E então, depois de 30 anos
fritando pastel, coxinha e quibe, chegará o dia tão sonhado em que
poderá ir para casa, sem horário, sem patrão e sem fedor de gordura
queimada nos cabelos, na pele e nas roupas.
Estará encerrada sua vida produtiva. Não importa se
casou, se teve filhos. Suas doenças não contam, nem suas opiniões,
ideias, palpites. Quase certamente não teve tempo de pensar. Quando
precisou votar, votou em quem era mais bonito ou ria com mais dentes.
Namorou com certeza, foi talvez um bicho saudável na cama, quem sabe
amou e foi amada. Algumas vezes, foi feliz; outras, infeliz.
Até que
certo dia, como acontece na vida de pobres e de ricos, aquela dorzinha
persistente aumentou, aumentou – e não teve santo que desse jeito.
Parentes e amigos no velório? Dois ou três gatos-pingados. Enterro
miserável, poucas flores, meia dúzia de lágrimas, nenhuma saudade.
LOUVOR DE IVANILDES
Batalhadora incansável, Ivanildes Pereira da Silva foi
exemplo de esforço, tenacidade e amor ao trabalho. Durante 30 longos
anos, matou a fome de milhões, incontáveis milhões, que degustavam seus
pastéis, suas coxinhas e seus quibes. Quantas vezes, olhando de
esguelha, não surrupiou disfarçadamente um pastel para contentar aquele
pivetinho que olhava faminto a vitrine embaçada? E quantas outras vezes
não empurrou um copo de refresco para a velhinha que, escorando-se na
porta, suava e tremia? Assim foi Ivanildes. Humilde exemplo de
estoicismo, tão grande como as maiores heroínas antigas ou modernas, é
um exemplo para todas as mulheres e – por que não? – para todos os
homens. Não fez sucesso na TV, não gravou discos, não pintou quadros,
não escreveu livros. Muito menos pintou discos, escreveu quadros, gravou
livros. No entanto, ao cabo de 30 anos, sua vida representa – aos olhos
de quem sabe ver – uma admirável carreira, digna dos maiores heróis
antigos ou modernos, de Alexandre a Napoleão, de Anita Garibaldi a
Teresa de Calcutá, de Tiradentes a Gandhi.
Na ponta do lápis, tim-tim por tim-tim, qual dos
colossos acima seria capaz de igualar sua vastíssima produção de bens
comestíveis e baratos, que abaixo revelo, perplexo com tanta grandeza e
tenacidade?
LEGADO IMATERIAL DE IVANILDES
Pastéis: 6.552.000 unidades
Coxinhas: 5.241.600 unidades
Quibes: 2.246.400 unidades
Total: 14.040.000 unidades, ou seja, mais de 14 milhões
de pastéis, coxinhas e quibes fritos em lanchonetes vagabundas, em 30
longos anos de pobreza e escravidão, nestes magníficos tempos de
riqueza, biologia molecular e shoppings maravilhosos.
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