Mauricio Moraes, Revista Fórum
E, de repente, um surto de cegueira
acometeu São Paulo. Não se sabe se começou na avenida Higienópolis, na
capital, ou se veio do interior. Há quem diga que o primeiro cego perdeu
o senso de realidade em Ribeirão Preto. De repente deu de achar que
estava na Califórnia. E a epidemia se espalhou silenciosamente pelo
Estado, por todas as cidades e vilarejos.
Em 2014, nas eleições para o governo do
Estado, a cegueira estava disseminada. Diferentemente do livro de José
Saramago, onde uma mancha branca, um “mar de leite”, cegava um a um os
habitantes de uma cidade fictícia, em São Paulo os cegos continuavam
enxergando. Mas há tempos já se diz que o pior cego é aquele que não
quer ver.
E eles não viram, ou apenas fizeram cara
de paisagem, junto com editores cegos de jornais e revistas, do rádio e
da TV. Tudo parecia normal durante a reeleição do “Geraldo”, alcunha de
Geraldus Alckminus, da longeva dinastia tucana. “Não vai faltar água”,
disse o governador pausadamente naquela campanha, ressaltando cada
sílaba, na maior mentira deslavada da história recente do país.
E assim a maioria dos paulistas
“acreditou” no que ele disse. Culparam São Pedro, o PT, e ignoraram
solenemente os milhões que escorreram nos túneis do metrô e a violência
que voltou a crescer. Se fizeram de Maria Antonieta no desmonte da
educação e das universidades do Estado. Aplaudiram a PM esfolando
manifestantes e matando jovens negros e pobres nas periferias. E
sobretudo se fizeram de surdos quando alertados que a Cantareira estava
baixando e que a água, logo logo, iria acabar.
No quarto mês de 2015, no início do
quarto reinado alckmino, ano 20 da era tucana, muitos paulistas
começaram a se dar conta da realidade. Talvez tenha sido o odor
inebriante do CC no busão ou as louças amontoadas na pia. O cabelo
ensebado por falta de banho pode ter ajudado. Cientistas suspeitam dos
efeitos colaterais da água do volume morto.
Dizem que uma moradora dos Jardins
acordou num surto psicótico depois que uma crosta de poeira havia se
impregnado em seu carro de luxo. Nem decuplicar a oferta ao lava jato
conseguiu driblar a realidade. “Esse atendimento não era gourmet?”,
gritava, insana. Mas naquele dia já não havia mais água.
Não demorou a que o caos se instalasse.
Todos correram aos supermercados para estocar o líquido precioso. As
gôndolas ficaram rapidamente vazias. Em Itu, um caminhão de água foi
sequestrado. Por toda a parte, havia registros de brigas, até por
garrafinhas de 500 ml de água. E o preço foi às alturas. Em Pinheiros,
uma rua cedeu depois que vários moradores cavaram poços clandestinos. A
desordem se instalou. No Palácio dos Bandeirantes, longe de tudo e de
todos, Alckminus tentava contornar a crise.
Desta vez, estava preocupado. O
Maquiavel de Pindamonhangaba enxergava tudo muito bem e, com jeito de
bom moço, já havia se tornado mestre em abafar CPIs na Assembleia
Legislativa ou em mentir que a Corregedoria da PM funciona. Agora,
estava sob grande pressão.
Ainda não havia sinal de nenhuma turba
chegando ao longínquo Palácio dos Bandeirantes. O Choque da PM bloqueou o
acesso ao Morumbi (com garantia de água à vontade, a fim de evitar um
motim policial). O estoque de balas de borracha foi reforçado e um novo
lote de gás lacrimogêneo fora usado contra manifestantes do Movimento
Água Livre.
Contra o povo, Alckmin tinha a polícia. O
que realmente o preocupava eram os 30 PIBs de São Paulo reunidos no
Palácio (a quem foi oferecido champagne por razões de “restrição
hídrica”, como explicou o cerimonial). Também apavoravam o governador as
chantagens dos acionistas da Sabesp. Apesar do preço exorbitante, a
falta d’água deixou a companhia deficitária, com as ações a preço de
banana na Bolsa de Nova York, onde eram comercializadas desde a
privatização parcial da empresa.
E assim os paulistas tentavam deixar a
cidade, o Estado. Um grande congestionamento, que já durava uma semana,
travou as rodovias. Na capital, moradores fugiam pelas ruas, carregando o
que podiam, em uma cena dantesca. Uns deliravam e arrancavam as roupas,
andando desorientados. A Força Nacional foi acionada. Já havia gente se
jogando no Tietê.
Em meio à tragédia, os jornais traziam
notícias otimistas. “Cacique Cobra Coral assegura que vai chover”, dizia
a manchete de um deles, com declarações de Alckminus justificando a
contração da “consultoria para deficiência hídrica”.
Analistas chegaram a prever um ataque da
população ao Bandeirantes, mas pesquisas mostravam que grande parte dos
paulistas ainda não tinha certeza sobre quem era o responsável pela
crise da água, se Dilma ou Haddad.
Na dúvida, resolveram ir embora o mais
rápido possível, com a fé abalada em São Pedro. Ainda mantinham a
esperança de que, um dia, a cidade fosse inundar mais uma vez durante as
chuvas de verão e que haveria água para todos (ou ao menos nos
camarotes). Para muitos, a cegueira era irreversível.


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