Lara Brenner, Revista Bula -
Era uma vez um lindo casal de gêmeos, João e Maria, que cresceu
rodeado de amor e carinho, com que só um príncipe e uma princesa
poderiam sonhar. Dentre muitas coisas, os papais lhes ensinaram a amar e
respeitar o próximo. Acima de tudo, repetiam que a coisa mais preciosa
que um vivente pode ter é a liberdade de escolher ser quem quer ser.
Os irmãozinhos cresceram articulados, independentes, geniosos e
inteligentes, até que, um dia, começaram a ir à escola. Lá conviveram
com seus iguais de forma sociável e saudável. Nem o uniforme tinha
distinção: ali, todos tinham os mesmos direitos. Um dia, os hormônios
dos agora crescidinhos irmãos explodiram como um vulcão. Tudo era
novidade, tudo tinha a cor da carne viva e pulsante.
Rapidamente, descobriram que os países baixos, até então adormecidos,
poderiam ser maravilhosos playgrounds. Tornaram-se desbravadores de
florestas tropicais, poliglotas que só se contentavam em conhecer a
língua se fosse in loco. Liam muito, adoravam estudar e, entre filmes,
livros e corpos suculentos, tornavam cada conversa uma viagem sedutora,
honesta e visceral.
Curtiam ir a fundo, sorrir com os olhos e Rita Lee.
Nadavam de braçada no farto mar de almas vagantes e terráqueas que
recebiam de bom grado seu cósmico e infinito colorido. Respiravam
liberdade, repulsavam as máscaras que lhes ofereciam os homens de muito
pudor. Cada gota de seus corpos era transparente. Dispensavam fantasias
porque não lhes eram necessárias, afinal os papais ensinaram a eles que a
coisa mais preciosa que o Homem pode ter é a liberdade de escolher ser
quem quer ser. E eram.
Um dia, o pequeno João conheceu uma moça diferente das demais. Era
dinâmica como ele e lhe ensinou coisas sobre o céu, a terra, a água e o
ar. Os outros risos, corpos e espíritos pareciam ensaios perto dos dela e
João sabia que nunca mais quereria ninguém. Todos ficaram felizes
porque eles decidiram se juntar sob-as-bênçãos-de-Deus-amém. João ganhou
whisky de primeira em sua despedida de solteiro, enquanto as mulheres
de sua vida choravam ocultamente as pitangas, lamentando não terem tido o
poder de prendê-lo.
“Aquelazinha” nem era lá essas coisas, mas uma
baita sortuda que teria na cama um homem experiente que saberia
exatamente o que fazer e como. Deve ter sido macumba. Deve ter sido chá
de calcinha, Deus me livre. Mas a moça, afinal, havia segurado João, um
homem tão livre e vivido. Ela tinha mesmo algum mérito. Ele havia
aquietado. Nada como um amor de verdade para trazer paz ao coração dos
homens. Vida longa aos dois.
A pequena Maria, no casamento de seu irmão, também conheceu alguém
especial. Era um moço culto, interessante, cheio de ideias liberais e de
vida plena. Conversaram a noite toda sobre o mundo, e, ao primeiro
raiar de sol, deixaram que os hormônios escrevessem história nos corpos
um do outro, numa inexplicável sinergia que fez os dois se apaixonarem.
Saíram logo no outro dia e — rompante de loucura pueril! — falaram até
em se casar naquele mês! Ele queria que ela fosse a mãe de seus filhos,
mas não se deu ao trabalho de perguntar se ela queria. Só que os amigos
do moço tinham conhecidos que tinham vizinhos que já haviam percorrido
as estradas de Maria. Alguns deles tinham colegas de trabalho que também
já haviam passado por lá e até contaram detalhes da intensa travessia. A
matemática gravada nas curvas de Maria começou a incomodar aquele moço,
que já não era mais gentil. Maria era igual às outras afinal. A família
dele repetia que era rodada, não se valorizava.
Ela não compreendia
aquilo tudo, porque sequer o conhecia quando esteve com os outros e,
agora, só queria estar com ele. Mas aquilo não importava, ela era uma
bela de uma puta. Também, com aquele jeito extravagante de quem dava na
primeira noite, já era de se esperar que tivesse um histórico
condenável. Tá vendo? Fica lendo esse tanto de pornografia hippie, dá
nisso.
Maria acordou com o telefone tocando sem parar. Havia uma dezena de
bonitas fotos de seu nu em todos os ângulos na internet. Mas também quem
mandou ser tão burra e se deixar fotografar, não é? Quem pariu Mateus
que o embale.
Maria ficou pra baixo um tempo, mas não muito. “A coisa mais preciosa
que um vivente pode ter é a liberdade de escolher ser quem se quer
ser”, disse-lhe tantas vezes sua mãe. Ela era o que escolhera e tinha
orgulho de sua estrada colorida, das histórias que construíra e do ser
humano em que se tornara. Sentia pena pelos que escolheram caminhos
turvos dedicados à vigília da vida alheia. Sentia pena do moço que
precisava ser validado por meio mundo para que se convencesse de sua
felicidade. Perdiam tanto tempo com os outros que se tornavam ocos e
ressecados, definhando num deserto fúnebre a se alimentar com
conta-gotas que derramava novidades fresquinhas como pão. Enquanto se
alimentavam de sua roupa, vida e história, Maria se nutria da vida em si
e não da dos outros.
Lembrou-se do uniforme idêntico que meninos e meninas usavam na
escola e de como a vida era democrática até então. Que pena uma grande
parcela da humanidade gastar o dom da vida em uma busca implacável pela
pequenez em grau máximo, obtendo-a com sucesso. Colocou sua melhor
roupa, passou o melhor batom e saiu de alma lavada. Aquele problema não
era mais dela.
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