Relatório anual do Credit Suisse revela que a concentração de renda
no planeta está aumentando. Para a diretora da Oxfam Brasil, Kátia Maia,
essa desigualdade prejudica a todos, inclusive aos mais ricos, citando,
como exemplo, a violência.
Do Envolverde
Cerca de 1% da população mundial detém quase 50% da riqueza produzida
no planeta. Os outros 99% dividem, em partes também desiguais, os cerca
de 50% restantes. A informação não é de uma organização pequena ou que
pudesse ser acusada de ter viés ideológico, mas, sim, de uma instituição
financeira respeitada mundialmente, o banco Credit Suisse. E,
pior, segundo o estudo, a concentração da riqueza está aumentando. A
pesquisa levou em conta dados patrimoniais de 4,8 milhões de adultos
procedentes de mais de 200 países. Os números são estarrecedores. Uma
sociedade tão desigual é viável em longo prazo? O que esses algarismos
significam em termos humanos? Por que se chegou a tal ponto? O que fazer
para mudar esta realidade?
Para responder essas e outras questões sobre o assunto, a Ser Médico
entrevistou a diretora executiva da Oxfam Brasil, a socióloga Kátia
Maia.
A sigla vem de Oxford e Famine (Oxford Committee for Famine
Reliefe/Comitê de Oxford para o Alívio da Fome). Trata-se de uma
confederação internacional de organizações, formada atualmente por 20
afiliadas operando em mais de 90 países, com o objetivo de desenvolver
ajuda humanitária e projetos para combater as desigualdades sociais no
mundo.
Ser Médico – O banco Credit Suisse divulgou, em outubro
último, seu relatório anual (Global Wealth Report 2015) sobre a
distribuição da riqueza global, apontando que a concentração de renda no
mundo e, portanto, as desigualdades sociais, aumentaram ainda mais em
relação ao estudo feito pela mesma instituição em 2014. Segundo o
documento, quase metade da riqueza do planeta está nas mãos de menos de
1% da população. O que esses números significam em termos humanos?
Kátia Maia – A Oxfam Internacional lançou, em
janeiro de 2014, o relatório Working for a few (Trabalhando para
poucos), que utilizou dados do relatório do banco Credit Suisse. As
análises dos números são chocantes. Como é possível conviver com o fato
de que as 85 pessoas mais ricas do mundo são donas do equivalente ao que
a metade da população mais pobre do planeta tem? Entre março de 2013 e
março de 2014, essas 85 pessoas aumentaram suas riquezas em 668 milhões
de dólares diariamente! São números assustadores. Mais que isso, eles
expressam uma profunda injustiça sobre a qual o nosso planeta está
assentado. É inaceitável! É desumano! Num planeta onde mais de 700
milhões de pessoas ainda passam fome, como é possível continuar com
tamanha concentração de riqueza? Essa desigualdade extrema reforça e
alimenta outras desigualdades, como as existentes entre homens e
mulheres, entre brancos e negros.
O que tem provocado esse aumento da concentração de renda?
Em outro relatório lançado pela Oxfam Internacional, em outubro de
2014, chamado Equilibre o Jogo, que trata da desigualdade econômica
extrema, nós apontamos algumas causas e, em especial, destacamos dois
motores econômicos e políticos da desigualdade, que podem contribuir
para explicar os extremos que vemos hoje: o fundamentalismo de mercado e
a captura do poder pelas elites econômicas. Como demonstrou o
economista francês Thomas Piketty, em O Capital no Século XXI, sem a
intervenção do Estado, a economia de mercado tende a concentrar a
riqueza nas mãos de uma pequena minoria, fazendo com que a desigualdade
aumente. Apesar disso, nos últimos anos, o pensamento econômico tem sido
dominado por uma abordagem fundamentalista, que insiste na ideia de que
o crescimento econômico só é alcançado reduzindo a intervenção do
Estado e deixando que o próprio mercado se organize. Isso prejudica,
principalmente, a regulação das atividades econômicas e a tributação,
necessárias para enfrentar a desigualdade. A influência e os interesses
de elites econômicas e políticas vêm, há muito tempo, reforçando a
desigualdade. O dinheiro compra influência política, que os mais ricos e
algumas empresas usam para consolidar ainda mais suas vantagens
injustas e, em alguns casos, até ilegais. Um exemplo é a incapacidade de
muitos países em reformar os seus sistemas fiscais para garantir uma
progressividade na arrecadação de impostos, de forma que os mais ricos
paguem, proporcionalmente, mais que os mais pobres.
E no Brasil, como a Oxfam vê a questão da concentração de renda?
O Brasil apresenta avanços no enfrentamento da concentração de renda,
mas ainda insuficiente para que possamos sair do lugar de destaque que
ainda ocupamos no ranking da desigualdade mundial. Os programas de
distribuição de renda, como o Bolsa-Família, e o aumento do valor real
do salário mínimo nos últimos 15 anos foram fatores fundamentais para
esse avanço. Porém, ainda estamos longe de solucionar o problema. O País
precisa de uma reforma tributária que efetivamente possibilite a
redistribuição de recursos daqueles que têm mais para aqueles que mais
precisam. Sabemos que quem tem mais renda e patrimônio aqui paga menos
imposto. Isso sem contar o tema da evasão e sonegação fiscal. Ou seja,
precisamos de justiça fiscal.
A Oxfam tem dados da concentração de renda no Brasil?
O Brasil tem grande produção de dados estatísticos que permitem
dimensionar a desigualdade de renda. Mas a verdadeira desigualdade se
mede sobre a riqueza, e ela inclui patrimônio, não é só renda. Apenas
recentemente a Receita Federal começou a disponibilizar as informações
sobre patrimônio, provavelmente influenciada pelo trabalho de Piketty. A
Oxfam Brasil vai elaborar um relatório sobre desigualdades em nosso
país, que deverá ser lançado no próximo ano. Mas já podemos dizer que o
Brasil ainda é um país patriarcalista, machista e racista, e essa
cultura se reflete nas instituições. Por exemplo, na política fiscal, o
nosso sistema tributário atual é extremamente regressivo e recolhe a
maioria dos impostos de maneira indireta e sobre o consumo, enquanto a
renda e o patrimônio são menos taxados. Proporcionalmente, isso onera
mais as famílias pobres, o que, consequentemente, onera mais os negros e
as mulheres. Esse modelo institucionaliza e perpetua a desigualdade. A
participação política também é extremamente influenciada pela nossa
cultura excludente e pelas elites econômicas. No Congresso Nacional, as
mulheres e os negros representam menos de 10% dos parlamentares,
enquanto são mais de 50% da população.
Como a desigualdade pode impactar o mundo?
As desigualdades de gênero, raça e econômica, além de serem
eticamente inaceitáveis, afetam as economias do mundo, pois excluem
milhões de pessoas que poderiam estar contribuindo para a construção de
uma sociedade mais igualitária e não, como ocorre, vivenciando uma
situação de desagregação social. Essas desigualdades também prejudicam o
crescimento econômico, gerando uma “captura” da riqueza produzida e
impedindo a construção de uma sociedade mais justa baseada no bem-estar
social. A desigualdade prejudica a todos, inclusive aos mais ricos. Um
exemplo disso é a violência. Segundo o escritório das Nações Unidas para
Drogas e Crimes (Unodc), as taxas de homicídios são quase quatro vezes
mais altas em países com desigualdade econômica extrema do que em nações
mais igualitárias. Em última instância, a desigualdade econômica
extrema pode inclusive trazer ameaças aos regimes democráticos. Com o
poder econômico acumulado nas mãos de um pequeno setor da população, a
influência deste sobre o Estado passa a causar distorções no sistema
político e nas políticas públicas. Com isso, governantes se veem
submetidos aos interesses da minoria, e isso pode levar a grande
insatisfação social, gerando revoltas e conflitos.
Esse cenário torna mais difícil a missão da Oxfam, no sentido de buscar soluções para o problema da pobreza e da injustiça?
Sem dúvida. O aumento da desigualdade faz parte da nossa agenda de
trabalho. Em nossa visão, é impossível avançar no combate à pobreza sem
lutar contra as diversas desigualdades existentes que contribuem para a
perpetuação das injustiças.
A Oxfam vê alguma alternativa para mudar esse quadro?
Seguramente existem alternativas. E elas passam pela mobilização dos
cidadãos, das organizações dos diferentes setores da sociedade, e devem
ser construídas de maneira democrática. A Oxfam defende algumas medidas
para contribuir com esse debate, entre as quais: a implementação de uma
política fiscal progressiva sobre a riqueza e a renda; o estabelecimento
de alternativas aos modelos de concentração de riqueza, renda e terras,
oferecendo dados e medindo a desigualdade nas avaliações de impacto das
políticas públicas; o fim à captura política e o estabelecimento da
priorização dos interesses da maioria sobre os privilégios de poucos; e a
garantia da igualdade de direitos e poder entre homens e mulheres,
brancos e negros.
Como a Oxfam atua para alcançar esses objetivos?
A Oxfam atua em parceria e aliança com outras organizações da
sociedade civil, movimentos sociais, governos, empresas e outros setores
que buscam enfrentar e encontrar soluções para a pobreza e a
desigualdade, no âmbito nacional e/ou global. Nós temos uma abordagem
baseada nos direitos humanos e acreditamos que todas as pessoas têm o
direito de desenvolver seu potencial, de viver fora da pobreza e em um
mundo menos desigual. Nós atuamos em situações de emergência, nas quais é
necessária a ajuda humanitária, desenvolvemos programas e projetos de
longo prazo e fazemos campanhas para influenciar tomadores de decisão e a
sociedade.
Como e quando a Oxfam surgiu?
A Oxfam surgiu na Inglaterra, em 1942, no contexto da Segunda Guerra
Mundial, para ajudar pessoas que estavam passando fome em países
europeus. Um grupo de cidadãos de Oxford resolveu pressionar os aliados
para quebrar o bloqueio na Europa e permitir o envio de alimentos para a
Grécia e Bélgica com o objetivo de aliviar a fome dos civis daqueles
países. Naquela época, o nome da organização significava Oxford
Committee for Famine Reliefe (Comitê de Oxford para o Alívio da Fome).
Nesses mais de 70 anos, a Oxfam cresceu e ampliou sua área de atuação.
Deixou de ser uma organização britânica para se tornar uma confederação
internacional, formada atualmente por 20 afiliadas operando em mais de
90 países, com mais de 4 mil trabalhadores e um orçamento anual próximo a
1 bilhão de euros. A Oxfam também ampliou sua forma de trabalho
inicial, focada em ajuda humanitária, passando a desenvolver programas e
projetos bem como campanhas. No Brasil, o primeiro apoio financeiro a
projetos ocorreu em 1958, e o primeiro escritório local foi aberto nos
anos 60, em Recife. Até 2014, a atuação no País se dava através das
afiliadas de outros países. A partir desse ano, foi criada a Oxfam
Brasil, uma afiliada nacional constituída no formato legal brasileiro de
associação e estabelecida na cidade de São Paulo. Ainda estamos
terminando de compor nossa equipe multidisciplinar, que deverá chegar a
17 funcionários até o final do ano. Iniciamos nossas atividades com o
público em 25 de novembro último, data da inauguração do nosso novo
escritório, quando colocamos no ar nossa página web
(http://www.oxfam.org.br), retomando nossas atividades com mídias
sociais. Já temos um Conselho Diretor em fase inicial. Nos primeiros
meses de 2016, estaremos com nosso Conselho Fiscal também em
funcionamento.
Como é feito o financiamento da organização?
O financiamento da Oxfam no mundo vem de diferentes fontes. Em alguns
países, os recursos são, na sua maioria, de contribuições individuais
mensais; em outros, de agências de cooperação de governos e agências
multilaterais, bem como de fundações privadas. Em praticamente todas as
20 afiliadas, qualquer pessoa pode colaborar, seja com recursos
financeiros, com trabalho voluntário ou como ativista. Nesse período
inicial, os recursos da Oxfam Brasil são oriundos de outras afiliadas da
Confederação. Estamos começando as atividades de captação de recursos,
prioritariamente por meio de doadores individuais. Já para o próximo ano
lançaremos campanhas e consolidaremos nosso trabalho com outras
organizações brasileiras que são nossas parceiras. Esperamos ter um
grande número de voluntários, apoiadores e ativistas para nossas ações. É
importante dizer que, desde 2006, a confederação Oxfam é signatária da
“Carta de Prestação de Contas e Responsabilidade de Organizações Não
Governamentais Internacionais” (International NGOS Accountability
Charter), apresentando relatórios técnicos e financeiros públicos, além
de atuar de forma transparente. A Oxfam Brasil operará em conformidade
com esses parâmetros, apresentando total transparência de suas
atividades, recursos e parcerias.
Há outras frentes, além da pobreza e da injustiça? Quais são e como a Oxfam atua em relação a elas?
A pobreza, a desigualdade e a injustiça são nosso guia. Mas essa
agenda é imensa, e a Oxfam focaliza suas ações, a cada cinco anos, por
meio do seu plano estratégico global. Para o período 2013-19, estão
colocadas seis metas de trabalho: 1. O direito das pessoas em demandar
uma vida melhor; 2. Justiça de gênero; 3. A importância de salvar vidas
ameaçadas por conflitos e desastres ambientais; 4. Um sistema alimentar
sustentável; 5. Um compartilhamento justo dos recursos naturais; 6. Um
financiamento para o desenvolvimento que assegure o acesso universal a
serviços essenciais como saúde e educação. No Brasil, ainda estamos
elaborando o plano estratégico para o período 2016-2020, mas alguns
temas deverão fazer parte de nossa agenda de trabalho: desigualdades nas
cidades – juventude, gênero e raça; justiça fiscal e captura política; o
papel do Brasil e sua influência no cenário regional e global; e o
sistema alimentar.
Podemos ter esperança em ver um mundo menos desigual?
Seguramente que sim. Apesar do aumento da desigualdade e dos imensos
desafios sobre os quais falamos até agora, existem avanços a serem
considerados, particularmente na conquista de direitos. O importante é
entender que um mundo menos desigual depende da mobilização e do
trabalho conjunto de organizações da sociedade civil, movimentos sociais
e vários outros setores da sociedade. A construção de um mundo mais
justo é uma tarefa coletiva, ainda que cada indivíduo possa e deva dar
sua contribuição. Pensar e desejar um mundo menos desigual não é somente
uma questão de esperança; é uma questão intrínseca ao que somos como
seres humanos. Prefiro acreditar que somos uma civilização na qual ainda
existe espaço para valores fundamentais como a ética e a solidariedade.
(Oxfam/ #Envolverde)
* Publicado originalmente na Revista Ser Médico Edição 73 e retirado do site Oxfam.
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