O dia em que o mundo começou a acabar


 
Por Sebastiao Geraldo Nunes, GGN -
 
Os relógios pararam à 1h17. Um longo clarão atravessou o céu, seguido por uma série de pequenos abalos. Como se a Terra soluçasse. Ele se levantou e foi até a janela.

            – O que é isso? – ela perguntou.

            Ele não respondeu.

            Foi até o banheiro e ligou o interruptor, mas a energia se fora. Um brilho opaco e rosado no vidro da janela. Ele caiu sobre um joelho e pegou a bucha de plástico e tampou a banheira e depois abriu as duas torneiras ao máximo. Ela estava de pé junto à porta, de camisola, segurando-se no batente, embalando a barriga com uma das mãos.

            O que é isso? – ela perguntou novamente. – O que está acontecendo?

            – Não sei.

            – Por que você vai tomar banho?

            – Não vou tomar banho.

            Ele saiu, entrou no mini-helicóptero supersônico que esperava no terraço e partiu sem se despedir.

DECISÕES URGENTES

            O Comitê de Evasão Imediata (COMEVI) estava reunido numa sala secreta e subterrânea de algum deserto da Terra. Ele, à cabeceira da mesa, olhou longamente para seus colegas do comitê.

            – Chegou a hora – disse. – De hoje em diante a vida na Terra definhará, até que nada mais sobreviva. Homens, plantas, peixes. Alguma pergunta?

            Ninguém disse nada. Todos sabiam o que esperar. Ou não esperar.

            – Só nos resta seguir o programa de evasão – disse. – Vamos recapitular?

            Silêncio.

            – Farei um resumo – disse. – Se houver alguma dúvida, favor expô-la logo que eu terminar. Não pode haver falhas. Tudo é urgente.

PROGRAMA DE EVASÃO

            Ele refletiu durante alguns segundos e começou.

            – Serão 200 pessoas, 100 homens e 100 mulheres, lotação máxima da nave. A dificílima escolha está feita e não cabe mais discussão. Todos têm a lista?

            Todos tinham. Não havia dúvidas.

            – Como podem verificar, a seleção foi supranacional, nem um pouco emocional. Nenhum presidente ou rei está na lista. Raça, cor, nacionalidade, condições sociais e culturais, nada disso influiu na escolha. Irá somente o que foi considerado o melhor da espécie humana vivendo agora.

            Ele pigarreou, sentiu um leve aperto na garganta, e continuou.

            – Para terem certeza de nosso rigor, considerem que minha mulher grávida não está na lista. Nem eu. E nenhum de vocês. Iremos definhar e morrer, em meses ou, no máximo, em alguns poucos anos, dependendo de sorte e acaso.
          
CONDIÇÕES FINAIS

            – A Terra está coberta de fumaça, cinza e poeira – disse. – A luz do Sol é apenas uma pálida lembrança do que foi. Os dias serão opacos de agora em diante. A água do mar terá cor de chumbo líquido. A lua será esquecida como inspiração e beleza.

            Todos concordaram gravemente. Eles sabiam.

            – Quando chegarem ao destino, os 200 colonizadores terão o necessário para recomeçar. Não do princípio, é lógico, já que muito da tecnologia atual estará à sua disposição. Por isso tantas naves partiram antes.

            Sorriu vagamente e continuou.

            – Antes disso, porém, precisamos refletir sobre a Terra hoje. Pensem nos líderes que se julgam importantes e tinham certeza de escapar. Quando descobrirem que a nave partiu e eles ficaram, o desespero será indescritível.

TRAGÉDIA E HECATOMBE

            – O que virá em seguida? – perguntou retoricamente. – Tudo de horrível, feio e asqueroso que se possa imaginar. Os preteridos tentarão se vingar uns nos outros, guerreando-se ferozmente. Haverá massacres pavorosos, tortura aleatória em massa. Os mais agressivos nas diversas nações assumirão o controle e tentarão governar. Os mais fracos morrerão logo, de todas as formas imagináveis.

            Fez uma pausa, cruzou as mãos, e continuou:

            – A culpa não é nossa. Nada podemos fazer pelos oito bilhões de humanos desesperados. Cada um deles terá o destino que lhe for imposto ou escolher. A culpa não é nossa, repito.

PERGUNTAS E RESPOSTAS

            Alguém ergueu a mão:

            – Como saberemos que em nenhum outro lugar da Terra planos como o nosso não estão sendo executados agora? Qual a garantia disso?

            Ele respondeu friamente:

            – Temos agentes infiltrados em todos os governos, entidades científicas, religiosas, culturais e econômicas. Nossa rede é tão ampla que nem mesmo nós conhecemos seus limites. Descobrimos diversos focos de resistência. Não houve piedade: todos foram exterminados.

            Houve outra pergunta:

            – Como saber que o melhor foi feito? Como saber que a humanidade, a partir desses 200, criará uma civilização superior à nossa?
            Ele abanou a cabeça:

            – Não há como saber. Durante séculos sonhamos com uma humanidade melhor. A catástrofe nos deu a oportunidade de testar. Pode dar certo. Ou não.

Notas:
1) O trecho inicial desta alegoria é uma paráfrase do romance distópico “A Estrada” (The Road, 2006), de Cormac McCarthy. A hipótese não me parece absurda.
2) Ilustração: Intervenção sobre uma das infinitas imagens para o fim da vida na Terra.
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